10 Critérios do ‘bom governo’: ciência, teoria e normatividade
Introdução
Este trabalho começa examinando a tensão entre a ambição explicativa da ciência política e a natureza inevitavelmente normativa da reflexão política. De saída, parto da ideia bastante consolidada de que ciência é teoria articulada em um loop com a pesquisa empírica, onde hipóteses são deduzidas, confrontadas com dados e, quando necessário, revisadas (Sartori 1974; Box 1976).
Esse ponto de partida, contudo, esbarra em um pressuposto bastante forte e raramente sustentável: o de que a observação do fenômeno político é neutra. A literatura que enfatiza o papel constitutivo da teoria lembra que, em política, quase sempre observamos fenômenos por meio de proxies e escolhas de recorte orientadas por valores (Warren 1989). Em outras palavras, a teoria é o que fornece as lentes que reduzem a complexidade do mundo real e o tornam “estudável” (Warren 1989).
Há uma vertente que aproxima teoria política e história das ideias políticas, tomando os conceitos como objetos históricos e disputados. Sob esse prisma, (i) a história dos conceitos reconstrói as condições de emergência, estabilização e mutação semântica das categorias com que observamos o mundo político (Koselleck 2006); e (ii) o contextualismo lê textos e argumentos como atos situados no tempo, com o objetivo de recuperar o que os autores estavam fazendo ao dizer o que disseram (Skinner 2002; Pocock 2003).
Por outro lado, há quem sustente que a reconstrução de usos e contextos é insuficiente para orientar o juízo. Defesas mais recentes de uma “teoria política política” buscam resgatar a avaliação normativa de questões transversais à ciência política em qualquer tempo histórico – e, portanto, independentemente dele (Kelly 2011; Waldron 2016). Nesse caso, a pergunta rawlsiana sobre a justiça de instituições permanece exemplar (Rawls 2016): discutir desenhos institucionais, por exemplo, é avaliar uma série de critérios definidos, inevitavelmente, de maneira normativa.
Este trabalho se divide em três seções, além desta introdução. Na seção seguinte, “O lugar da Teoria Política”, detalho os critérios de cientificidade e a crítica à neutralidade observacional, discutindo implicações para a pesquisa empírica e explicação causal (Sartori 1974; Box 1976; Warren 1989). Em “Dois clássicos: Aristóteles e Maquiavel”, examino como suas arquiteturas conceituais – a tipologia de regimes e a defesa da forma mista em Aristóteles; a república como processamento institucional do conflito e a liberdade como não-dominação em Maquiavel – iluminam a relação entre descrição e normatividade (Aristóteles 2021; Maquiavel 2007). A opção por Aristóteles e Maquiavel decorre diretamente do quadro acima: ambos combinam algum grau de empiria com juízos explicitamente normativos para proporem a definição de um bom governo. Não é meu objetivo validá-los como “cientistas políticos”; interessa tornar explícita a arquitetura conceitual com que derivam critérios normativos de exemplos e indicar como tais critérios podem ser operacionalizados por meio de proxies observáveis. Termino com algumas considerações finais e retomando as principais discussões do trabalho.
O lugar da Teoria Política
A definição do que é teoria política passa, frequentemente, por uma distinção da ciência política como um campo de conhecimento capaz de elaborar conhecimento científico sobre o fenômeno político. É verdade que a ideia de conhecimento científico por muito tempo negou às ciências humanas, em geral, e à ciência política, em particular, o status de ciência. Isso, sobretudo, porque a ideia de cientificidade pressupunha a aplicação do método newtoniano, que por sua vez pressupõe a capacidade de criação de leis gerais a partir de dados empiricamente observáveis.
É no contexto dessa discussão que Sartori (1974) define o que é uma “ciência” política, capaz de produzir conhecimento científico verificável ligado ao fenômeno da política. O primeiro passo é justificar a existência de ciências fora do eixo das ciências exatas, definidas sobretudo pela aplicação do método newtoniano:
One must therefore distinguish between science in a strict sense and science in a broad sense. In the strict sense, all sciences are measured by a reigning science which constitutes their archetype: here science means exact science, science in the physicalist sense. In the broad sense, the “unit of science” refers to the minimum common denominator in whatever scientific discourse: here science stands for science in general. In this second case, we recognize a plurality of sciences and of scientific methods ranging – across a variety of intermediate cases – from the classifying to the physicalist sciences. And it is the flexible and many-sided conception that suits the discussion of the sciences of man. (Sartori 1974, 134)
Para Sartori (1974), a definição mais geral de ciência remete às seguintes características: “[…] (1) empirical verification; (2) descriptive explanation; (3) value neutrality; (4) segmentation and cumulability; (5) the focus on existences; (6) operationality and applicability.” (Sartori 1974, 139). De fato, são essas características que contrapõem a ciência à filosofia: por um lado, a filosofia política é essencialmente um discurso avaliativo e fundamentalmente normativo; por outro, a ciência é descritiva, e não avaliativa, com a ambição de produzir explicações causais sobre a política. A distinção é tão fundamental que um conhecimento que se propõe científico não pode ser avaliativo; isto é, o esforço de produzir uma explicação não pode se confundir com a avaliação das consequências dessas explicações. No limite, isso implica dizer que ciência e normatividade são incompatíveis, colocando ciência e filosofia como extremos de um continuum (Sartori 1974).
Daí deriva, portanto, o lugar da teoria política para Sartori (1974), bem resumido pela seguinte passagem: “As a rule, whenever a scientific discipline becomes consolidated it develops an endogenous theory, i.e., the fruit of reflection of that science upon itself. […]. At the end, it is the adept of ‘pure’ science who produces the theory of its own science.” (Sartori 1974, 141). Na prática, sendo fruto da reflexão da ciência sobre ela mesma, a teoria que importa para a produção de conhecimento científico é aquela capaz de produzir generalizações a partir de dados observáveis. Na verdade, “Science is theory hinged on research, and research which feeds back on theory.” (Sartori 1974, 142).
É curioso notar que a especificação da relação entre ciência e teoria para Sartori (1974) lembra, em larga medida, a especificação proposta por George Box, um dos grandes estatísticos do século passado, no clássico Science and Statistics (Box 1976). O autor define a prática do conhecimento científico como um loop entre análise teórica e pesquisa empírica em algumas etapas: (i) o cientista analisa a teoria disponível para gerar deduções; (ii) confronta a teoria com os “fatos” – isto é, os dados disponíveis; e, caso a teoria e a empiria divirjam, (iii) atualiza a teoria para que ela seja capaz de explicar o fenômeno observado. Em outras palavras: o confronto entre fatos e teoria produz erros, o que implica a necessidade de revisão de um ou outro elemento.
Na estatística, de fato, a visão de Box (1976) ainda hoje é estimulada. De fato, essa visão se alinha bem às ciências exatas ou naturais, como a biologia e a física. Quanto aplicada à ciência política, no entanto, raciocínios como os de Box (1976) e Sartori (1974) pressupõem uma assunção muito forte e dificilmente sustentável: a de que a observação dos dados é necessariamente objetiva. O problema é que o fenômeno político exige interpretação valorativa (Warren 1989), e supor objetividade na observação desses fenômenos é apenas isso: uma suposição.
A esse respeito, a discussão proposta por Warren (1989) inclui a importância da teoria na análise de fenômenos políticos. De fato, a argumentação do autor se alinha à ideia de que a observação dos fenômenos políticos não é imediata; antes, essa observação acontece a partir de proxies do fenômeno que se pretende observar:
More often, the explanatory powers of theories is indirect in a way that provides them with a meaning-constitutive dimension: we use them as limiting cases and counterfactuals to reduce the complexity of the political world so it might become a discrete object of study. We decide to reduce complexity in one way rather than another for reasons that are, more often than not, normative. This is the way it should be, since this is how we characterize certain dimensions of the world as problematic – say, its efficiency, justice, distribution of power, or violence – and thus worthy of further investigation. (Warren 1989, 608)
Suponha, por exemplo, a realização de um survey que questiona as preferências eleitorais dos eleitores em determinados cenários. Além disso, o mesmo survey também coleta uma série de respostas para perguntas sobre a avaliação da economia do país, sobre a avaliação do governo em mandato, bem como características demográficas dos eleitores. A análise empírica das respostas envolve uma série de pressupostos teóricos – por exemplo, a racionalidade do eleitor (Gilboa 2012) – que nos ajudam a reduzir a complexidade do mundo real e permitem a proposição de explicações causais.
Esse exemplo revela o ponto central proposto por Warren (1989): a teoria política é importante, sobretudo, porque ela desempenha certas funções, na pesquisa científica, que não podem ser esgotadas sem ela. Aliás, é a teorização que dá sentido à própria pesquisa empírica, embora isso não impeça, é claro, que a teoria possa ser reformulada a partir da empiria. De fato, trata-se de uma reespecificação da relação entre teoria e empiria, sem pressupor uma observação neutra e preservando o circuito de retroalimentação entre pressupostos teóricos e dados observacionais (cf. Sartori 1974; Box 1976).
De outro lado, há uma abordagem que aproxima teoria política e história das ideias políticas. Um expoente dessa discussão é Reinhart Koselleck, que dá corpo aos fundamentos metodológicos que nos permitem reconstruir as condições de emergência, estabilização e transformação semântica dos conceitos que estruturam a experiência política (Koselleck 2006).
Seu exemplo clássico, aplicado à historiografia, é a passagem, no alemão, de um uso sistemático do termo Historie (a narrativa dos acontecimentos) para Geschichte (o processo histórico). Na pré-modernidade, a história era mestra da vida – isto é, atuava como um manual, oferecendo as melhores condutas no tempo presente para garantir que o curso da história fosse previsível. No entanto, alguns imponderáveis puseram em xeque a ideia de que a compreensão de fatos passados garantia a previsibilidade do presente. Isso inclui as guerras religiosas, que eram entendidas como o próprio apocalipse; a descoberta do “Novo Mundo”, onde havia povos que se organizavam de maneira absolutamente distinta da Europa; e o desenvolvimento da filosofia ilustrada, que acompanhava a ideia de progresso e aperfeiçoamento da humanidade.
Em termos práticos, isso significa que, a partir do fim do século XVIII, deixa-se de falar sobretudo em Historie para falar em Geschichte (a “História” no singular), porque a modernidade passou a ver o tempo como força transformadora. É essa virada semântica que explica a substituição – “História” deixa de ser um conjunto de relatos independentes e se converte na ideia de um processo histórico compartilhado pela humanidade como um todo.
Nesse contexto, não surpreende que a teoria política seja pensada como algo indissociável da história. De fato, para Koselleck (2006), só podemos teorizar a respeito (ou avaliar empiricamente) ideias como as de “estamento”, “ordem” ou “classe” (Koselleck 2006, 103) a partir do momento em que o cientista compreende como o conceito em questão era utilizado por determinada comunidade em um particular contexto histórico. A história dos conceitos, portanto, é nada menos que uma estratégia metodológica para analisar conceitos de maneira contextual:
A isso se segue uma exigência metodológica mínima: a obrigação de compreender os conflitos sociais e políticos do passado por meio das delimitações conceituais e da interpretação dos usos da linguagem feitos pelos contemporâneos de então. (Koselleck 2006, 103).
Quentin Skinner, um dos representantes da Escola de Cambridge, pode ser encaixado nessa mesma ala de autores. Skinner (2002) propõe uma abordagem contextualista para a história dos conceitos, argumentando que a compreensão de um texto ou ideia requer ir além do que foi dito para entender o que o autor pretendeu comunicar ao dizê-lo. Para Skinner (2002), isso implica situar os textos dentro de seus contextos intelectuais e linguísticos específicos, permitindo ao historiador reconhecer o que os autores estavam “fazendo” ao escrever.
I argue that, if we are to write the history of ideas in a properly historical style, we need to situate the texts we study within such intellectual contexts and frameworks of discourse as enable us to recognise what their authors were doing in writing them. […]. My aspiration is not of course to perform the impossible task of getting inside the heads of long-dead thinkers; it is simply to use the ordinary techniques of historical enquiry to grasp their concepts, to follow their distinctions, to recover their beliefs, and, so far as possible, to see things their way. (Skinner 2002, vii)
A visão de Skinner (2002) é compartilhada por seu contemporâneo Pocock (2003), também integrante da Escola de Cambridge. Em particular, ambos insistem que o pensamento político deve ser estudado como discurso agenciado por atores históricos situados em contextos específicos. Em outras palavras, a teoria não deve ser entendida como um mero veículo de pensamento, mas sobretudo como uma intervenção linguística no mundo social – isto é, como ações por si mesmas (Skinner 2002; Pocock 2003). Ambos reconhecem, inclusive, que a linguagem é também um recurso que impõe restrições aos atores históricos, que são moldados pelas linguagens disponíveis.
Há autores profundamente críticos da abordagem contextualista, dentre os quais se destacam Paul Kelly e Jeremy Waldron. Em Rescuing political theory from the tyranny of history, Kelly (2011) defende que o contexto não é um dado que decide por nós. A história e o contexto servem para informar a teoria e evitar abstrações vazias, mas não determinam o que é justificado; submeter a avaliação normativa às contingências históricas seria deixar a história exercer uma “tirania” sobre a filosofia.
O ponto central, de fato, é indicar que a reflexão política é indissociável de uma natureza normativa, entendendo normatividade de maneira geral, capaz de identificar um sentido positivo e um sentido negativo para a ação política dos indivíduos (Kelly 2011). É da natureza da reflexão política, por exemplo, fazer uma definição normativa do que é uma boa ou uma má ordem. Para isso, a ideia de contexto é mais limitadora do que necessária, afinal, a resposta para certos problemas políticos, para Kelly (2011), não é uma resposta contextual; antes, há uma série de problemas que são transversais à política em quaisquer contextos. De fato, ao contrário das propostas de Skinner (2002) e Pocock (2003), Kelly (2011) rejeita a ideia de que não há questões perenes ou conclusões perenes ao longo do curso da história, ou seja, independentemente do contexto.
Waldron (2016), por sua vez, defende uma “teoria política política” que prioriza o estudo de instituições políticas como o foco principal da disciplina. Sua preocupação é com a justificação e as dimensões normativas dessas instituições, e não apenas sua compreensão histórica:
The study that I am envisaging is emphatically normative, for we have choices to make about our institutions and processes. […]. We bring to these choices reasons of various kinds, and the reasons in turn implicate values and principles that are also the basis for our assessment of existing institutions – parliament, the monarchy, the courts, the administration, the political parties, the country’s division into nations with devolved legislatures, and the international laws and institutions in which we participate. (Waldron 2016, 8)
Não por acaso, essas ideias são inspiradas em larga medida na teoria normativa de John Rawls. Veja: a pergunta primordial de Rawls (2016) é sobre como produzir uma ordem justa, isto é, uma ordem que aloque recursos de maneira equitativa. Trata-se, evidentemente, de uma questão que não pode ser respondida fora de uma abordagem fundamentalmente normativa. É sobretudo nesse aspecto que autores como Kelly (2011) e Waldron (2016) insistem que é impossível pensar teoria política fora de sua dimensão normativa: se estamos avaliando e distinguindo processos políticos, por exemplo, entre bons e ruins, conflituosos ou não conflituosos, então o ato é normativo em essência.
Dois clássicos: Aristóteles e Maquiavel
Esta seção examina, de modo comparativo, o que conta como bom governo em Aristóteles e Maquiavel e com que evidências tais juízos se sustentam. Não se trata de anacronicamente apresentá-los como “cientistas políticos”, mas de explicitar a arquitetura conceitual derivada de critérios normativos, exemplos históricos e constituições. Em Aristóteles, tomo A Política (Aristóteles 2021) para reconstruir a tipologia de regimes segundo dois eixos – quem detém o mando e a finalidade do poder – e mostrar por que a politeía emerge como forma mista voltada à estabilidade e ao bem comum. Em Maquiavel, recorro a O Príncipe e aos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio (Maquiavel 2010, 2007) para discutir a ideia de bom governo como aquele que preserva a liberdade como não-dominação ao processar institucionalmente o conflito.
A reflexão sobre a política em Aristóteles parte de dados empíricos – mais especificamente, parte da observação de como as cidades-estado funcionam, ou seja, da observação de suas constituições. Daí derivam a tipologia aristotélica das formas de governo e suas versões degeneradas:
Os desvios das constituições mencionadas são a tirania, correspondendo à monarquia, a oligarquia à aristocracia, e a democracia ao governo constitucional; de fato, tirania é a monarquia governada no interesse do monarca, a oligarquia é o governo no interesse dos ricos, e a democracia é o governo no interesse dos pobres, e nenhuma destas formas governa para o bem de toda a comunidade. (Aristóteles 2021, 1279b)
Quando os governantes “[…] governam tendo em vista o bem comum, estas constituições devem ser forçosamente as corretas […]” (Aristóteles 2021, 1279b, grifo meu). Essas formas de governo, no entanto, vivem sob tensão porque a pólis é apenas uma dimensão da vida social. De fato, a pólis – a vida propriamente política, que envolve o estabelecimento de quem manda e quem obedece – coexiste com seus contraconceitos: o oikos, que diz respeito à vida doméstica, e o pólemos, que diz respeito à guerra. Há, portanto, uma dimensões coexistentes da vida na cidade que torna crônica a possibilidade de instabilidade. Isso significa dizer, em outras palavras, que se a política é a resposta a um problema de ordem, estabilizando o mando político, a possibilidade de stásis (revolução) é constitutiva e pode provocar mutações de um regime para outro.
Aristóteles sugere, com frequência, trajetórias prováveis de transformação. Um exemplo emblemático é o da aristocracia, governo dos melhores, que tende a se degenerar em oligarquia, governo dos mais ricos. Essa degeneração ocorre porque os melhores, ao acumularem capacidade diferencial na ação coletiva, passam a acumular mais renda, deslocando o princípio de distinção do mérito para a riqueza.
Em um certo sentido, para Aristóteles, a origem do conflito é anterior à política. Na verdade, a política é uma solução para o conflito na medida em que ela estabiliza quem manda e quem obedece. Essa estabilização, inclusive, é garantida de maneira mais eficiente quando a forma de governo é mista, porque ela equilibra as características positivas e negativas das formas puras de governo. De fato, Aristóteles acredita que o governo constitucional é a melhor forma de governo, justamente porque ele é o balanceamento entre a democracia e a oligarquia.
Isso não é por acaso. Para Aristóteles, o que produz estabilidade institucional é, em grande medida, o equilíbrio entre ricos e pobres: onde as diferenças de riqueza não são abissais, os conflitos tendem a ser menos inflamáveis. Daí, por exemplo, segue o argumento a respeito da classe média:
É igualmente claro que a comunidade política administrada pela classe média é a melhor, e que é possível governar bem as cidades nas quais a classe média é mais numerosa, e de preferência mais forte que as outras duas classes juntas, ou se assim não for, mais forte que qualquer delas isoladamente, pois ela pode fazer pender a balança a favor da classe à qual vier a juntar-se, impedindo, assim, a preponderância de um dos extremos contrários. (Aristóteles 2021, 1296b)
Essa é a vantagem da politeía, ou governo constitucional. Em primeiro lugar, ela garante a isonomia – isto é, existem diferenças entre os indivíduos, mas essas diferenças não se reproduzem, de forma institucional, em regras que os diferenciem como cidadãos. Ao mesmo tempo, essa forma mista de governo define que o poder político será exercido por indivíduos reconhecidos com base no mérito pessoal por meio da representação política. Na prática, portanto, o governo constitucional permite que a isonomia coexista com algum grau de distinção entre os cidadãos, figurada pela representação. Mesmo assim, é claro, o mundo social é multifacetado, e governos constitucionais não impedem o conflito.
Passemos à temática do bom governo para Maquiavel. Há, nele, dois gestos complementares: um gesto comparativo, que observa experiências institucionais e seus efeitos, e um gesto exemplar, que extrai de episódios históricos uma série de hipóteses sobre condições de sucesso e de fracasso. De fato, n’O Príncipe (Maquiavel 2010), Maquiavel indica que há algumas poucas maneiras de se acessar o poder político: por fundação, herança ou conquista do principado. A previsibilidade da ação política, aqui, não depende da ideia de que “a história se repete”, mas de que o horizonte de cursos de ação é finito e relativamente estável, porque os seres humanos, em geral, são movidos por interesses e paixões recorrentes. Essa previsibilidade é suficiente para orientar diagnósticos prescritivos: como mostra a história, certas combinações de circunstâncias tornam certos resultados mais plausíveis que outros (Maquiavel 2007).
A temática do bom governo aparece de maneira mais sistemática nos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio (Maquiavel 2007). O ponto fundamental é que um bom regime não é aquele que elimina o conflito, mas aquele que o processa institucionalmente. O antônimo prático da república, em Maquiavel, é composto por três situações limite: a tirania, em que um grupo consegue exercer o monopólio da violência; a guerra civil; e a guerra externa, de um Estado contra o outro. Nessas situações, não existe a possibilidade de criação de regras que gerem a estabilidade e, portanto, não existe ambiente para instituições que processem o conflito.
Essa definição do bom governo implica uma definição de liberdade negativa, ou, como chamaram os republicanos contemporâneos, uma “liberdade como não-dominação”. Isso quer dizer que o exercício da liberdade é algo fundamentalmente prático, em particular porque para exercê-la é necessário assumir uma série de funções políticas, limitando, inclusive, a atuação das elites. De fato, Maquiavel (2007) acreditava que a república romana era ideal enquanto era capaz de mesclar todas as formas de governo na mesma constituição, algo semelhante à ideia aristotélica quando afirma que o bom governo é o governo constitucional, correspondente a uma mistura de formas puras de governo (Aristóteles 2021).
Vale explorar este ponto mais detidamente. Segundo Maquiavel (2007), a estabilidade da república romana era proveniente de um equilíbrio dinâmico, que convivia constantemente com conflitos processados de maneira institucional. Não se trata de um repouso, mas de um balanço sempre contestado entre partes que aspiram a coisas diversas: os grandes (isto é, as elites) buscam comandar, e o povo busca não ser comandado. Enquanto esse desequilíbrio era canalizado por ordens comuns (leis, magistraturas, tribunatos), a liberdade coletiva era preservada. A expressão Senatus Populusque Romanus se refere a esse equilíbrio fruto da desunião entre a plebe e o Senado – oligárquico por natureza, já que era composto pelos ricos donos de terra. Esses dois grupos constitutivos de Roma, materialmente distintos, permanecem unidos a partir de instituições que permitem processar os conflitos.
Vale, a essa altura, retomar a questão fundamental: o bom governo não é aquele em que não há conflitos, mas aquele que é capaz de processá-los de maneira ordeira. Mais do que isso, as desavenças entre o povo e o Senado são, inclusive, a causa da liberdade de Roma, e não de sua ruína:
Direi que quem condena os tumultos entre os nobres e a plebe parece censurar as coisas que foram a causa primeira da liberdade de Roma e considerar mais as assuadas e a grita que de tais tumultos nasciam do que os bons efeitos que eles geravam; e não consideram que em toda república há dois humores diferentes, o do povo, e o dos grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles, como facilmente se pode ver que ocorreu em Roma; porque dos Tarquínios aos Gracos, durante mais de trezentos anos, os tumultos de Roma raras vezes redundaram em exílio e raríssimas vezes em sangue. Portanto, não se pode dizer que tais tumultos sejam nocivos, nem que tal república fosse dividida, se em tanto tempo, em razão de suas diferenças, não mandou para o exílio mais de oito ou dez cidadãos, matou pouquíssimos e não condenou muitos ao pagamento de multas. (Maquiavel 2007, 21–22, grifo meu)
A crise agrária, conhecida como a Revolta dos Gracos, ilustra o que ocorre quando as instituições vigentes não antecipam novos objetos de disputa. A conquista de novas terras pelo Império Romano reinaugurou a pergunta sobre sua destinação; quando a plebe demanda redistribuição e os novos proprietários recusam renegociar, as instituições já não conseguem dar vazão ao conflito. A república degringola pela incapacidade de convertê-lo em procedimento (Maquiavel 2007).
A obra de Maquiavel é fundamental e foi retomada por uma série de autores influentes do nosso tempo. Gramsci, por exemplo, faz uma interpretação marxista da obra de Maquiavel, particularmente d’O Príncipe. Essa interpretação não será analisada em pormenores neste texto, mas o fato é que se trata de um ponto de vista combatido sobretudo por Lefort (1986), que entende a leitura gramsciana de Maquiavel como um esvaziamento do sentido original de sua obra. Lefort (1986) argumenta, mais especificamente, que ao compreender a obra maquiaveliana como uma antecipação da luta de classes, Gramsci esvazia o texto da sua riqueza teórica; a leitura como uma prolepse não enxerga precisamente o que há de original na reflexão, e condiciona o marxismo à leitura de Maquiavel.
Para Lefort (1986), a originalidade de Maquiavel está em conceber o conflito como um dado permanente do mundo político. Ordem e conflito não ocupam polos estanques; a política é precisamente o lugar onde antagonismos são, quando muito, negociados e temporalmente reconfigurados. Trata-se de recusar a dicotomia entre uma forma “pura” da ordem e da desordem: em Maquiavel, ambas as dimensões se conectam de tal modo que o objetivo das instituições é tornar a convivência suportável (Lefort 1986).
A leitura que Lefort (1986) faz de Maquiavel procura combater a crença de que há uma forma política que carrega, em si mesma, a estabilidade. O argumento é que, na prática, é impossível criar uma engenharia institucional e social boas o suficiente para solucionar todos os problemas do conflito político de modo permanente; no melhor dos casos, ela o processa e o reinscreve sob novas regras, até que novas circunstâncias voltem a excedê-las. A questão central é que a estabilidade não é uma propriedade intrínseca a um ou outro arranjo institucional (Lefort 1986).
Considerações finais
A investigação do político não se faz a partir de uma observação neutra, mas de lentes teóricas que recortam o objeto e selecionam proxies (Waldron 2016). Evidentemente, isso não invalida a ambição explicativa da ciência política, mas a requalifica: a teoria é uma condição de possibilidade da pesquisa empírica.
A leitura dos dois clássicos confirma esse ponto: ambos derivam princípios normativos a partir de exemplos empíricos. Em Maquiavel, a história de Roma e os casos comparados sustentam a tese de que o bom governo é o que preserva a liberdade como não-dominação ao institucionalizar o conflito entre “humores” – leis, magistraturas e tribunatos processam as desavenças de forma institucional (Maquiavel 2007; Lefort 1986). Em Aristóteles, a análise das constituições das cidades gregas o leva a preferir a politeía como forma mista que estabiliza o mando político, sobretudo porque combina isonomia e mérito e modera a stásis por meio do equilíbrio entre ricos e pobres (Aristóteles 2021). Em todo caso, o juízo sobre o “bom governo” articula critérios normativos (bem comum; não-dominação) a proxies observáveis (desenho institucional, distribuição de riqueza, padrões de participação).
Esse esforço não deve ser confundido com a tentativa de conferir cientificidade a Aristóteles ou Maquiavel. Trata-se, com alguma licença poética, de um paralelo metodológico: explicitar critérios normativos, traduzi-los em proxies observáveis e testar seus efeitos, mantendo aberto o circuito entre reconstrução conceitual e avaliação empírica. Assim evitamos o anacronismo e ganhamos clareza sobre as escolhas que orientam a observação e os compromissos normativos da teoria – isto é, que “bem comum” perseguimos, que formas de institucionalização do conflito aceitamos, que indicadores tomamos por liberdade ou estabilidade. O objetivo não é validar os clássicos como precursores da ciência, mas aproveitar o que suas arquiteturas conceituais ainda oferecem de heurístico para pesquisas contemporâneas.